13 abril 2019

VDK-4580

Corria o ano da graça de 1968, ano sem graça pra se viver. Sem pedir licença, surgiu um tal de AI-5. Aí sim, tivemos muitos ais.
Meu pai tinha uma Kombi azul claro como as manhãs de abril, que durante a semana fazia carretos e aos domingos levava o glorioso esquadrão composto de filhos e sobrinhos para contendas nada gloriosas. Ele gostava do risco.
Apesar de todos nossos argumentos medrosos não teve jeito. Nos levou com sua Kombi para disputar um festival futebolístico, na favela mais violenta de BH.
No trajeto, meu pai travestido de treinador experiente, fumando um "Continental" sem filtro, ditava ordens e arriscava conselhos táticos. Não prestei atenção nas estratégias. A minha estratégia era sair vivo daquele covil.
Estacionou a Kombi numa ribanceira, bem em frente ao campo. Trocamos de roupa ali mesmo, nosso vestiário improvisado. Amarrei o cadarço da chuteira, dando volta no tornozelo, feito Cleópatra.
Súbito, no alto dos meus quinze anos não senti mais medo. Pra quem queria guerrear contra ditadura, um futebolzinho na favela era café pequeno. Relaxei e até meti um golaço de fora da área.
Só que no finalzinho do jogo, quando o centroavante deles descia sozinho e célere pra empatar o jogo, meu pai não teve dúvida: acelerou sua kombi e postou-se em frente ao gol. O centroavante tentou colocar a bola entre as pernas ou entre os pneus da kombi. Não conseguiu. Ficou presa no cano de descarga.
Alvoroço na favela mais violenta. "No meio de carros rabo de peixe, rabo de saia e rabo de arraia, entramos num rabo de foguete". Corremos pra dentro do nosso porto seguro.
O povo enfurecido do lado de fora, balançava tanto a nossa embarcação que a placa "faz-se carreto" foi parar na bandeirinha de córner. Vidros estilhaçados e bagaços de laranja, armas pueris da época, em nossas cabeças suadas.
O nosso comandante fez bonito. Engatou uma primeira, fez barulho, fez poeira, fez estrago e nos fez feliz. Ganhamos mas não levamos. O troféu ficou na casa do adversário.
Meses depois, sábio e sensível como todo presidente de clube de favela, achou que aquele troféu estava fora de lugar. Convocou meu pai pra lhe entregar o troféu. Fui junto. Pai voltou ao local do crime e foi aplaudido. Quem mais aplaudiu foi o centroavante que não conseguiu atravessar a bola entre as rodas da Kombi. Somos amigos até hoje. O mais novo dele é meu afilhado querido. Nunca deu um chute na bola. Nadador profissional do Minas Tênis Clube. Nunca foi vaiado ou aplaudido.
Voltando pra casa, ele batucando no volante um samba do Noel, cigarro no canto da boca, de vez em quando um olhar pra mim, só pra se certificar que fez de novo o bem feito. Eu, com os braços pra fora do carro, batendo na lataria e tentando acompanhar o samba. Não consegui. Atravessei. Nunca consegui acompanhá-lo, só conseguia acariciar, com meu olhar de adulto, o menino ao meu lado.
Outro dia, caminhando ao lado do Mercado Central, deparei-me com uma Kombi azul claro como as manhãs de abril. Será que é ela? Não cheguei a conferir, não importava mais. Meu pai já havia nos deixado há vinte anos. Senti pena do proprietário. Só carregava frutas e legumes.
Meu pai carregava sonhos e delírios.
(Texto de Ronaldo Guimarães, escritor, professor e pedagogo)

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